16/06/10

Espaço Campanhã - A desordem da desrazão


A exposição no Espaço Campanhã apresenta uma série de desenhos que fiz para o livro Amanhã arrebatarei uma besta
(escrito e desenhado por mim, ainda por publicar). Neste contexto, com base na leitura do livro, o Pedro Vieira Moura teve a gentileza de escrever um texto bastante esclarecedor e sucinto para acompanhar a circunstância. Aqui segue:

A desordem da desrazão

“Mas o mundo não está lá para ser explicado.
Quando o tentaram fazer, o mundo perdeu,
e os homens perderam-se nas explicações.”
Daniel Silvestre da Silva, Amanhã arrebatarei uma besta



Tu que aqui entras, não abandones a esperança.

Amanhã arrebatarei uma besta é uma novela policial à Poe ou Bustos Domecq: não é tanto o crime que interessa, ou o criminoso, por vezes esquecidos, mas o próprio processo de projecção e reconstrução do facto. Não abandones a esperança de resolver o crime, pois lá chegarás. Mas não esperes que o resolva por ti.

O livro que vês nestas paredes tem quatro capítulos, correspondendo a quatro estádios: a vigília, o adormecer, o sonho e o despertar. Tal como algumas das imagens de Daniel Silvestre da Silva parecem prometer uma construção para mais tarde (uma escultura, uma instalação, uma performance; mas não serão elas já existentes no papel?), procura tu encontrar quatro formas de caminhar pautadas pelo ritmo dos capítulos.

1. Pela manhã: um copo de leite e um abacate (vigília): com o establishing shot para dentro do túnel, acelera o passo, descobre o crime, pensa nas soluções, age rapidamente; ainda estás indeciso, não percebes o que pensar, não há quaisquer decisões.
2. À noite não como nada (adormecer): na turbulência mole do hipnagógico, caminha passo a passo, sem que te apercebas que as imagens que vês e as que imaginas e começam a misturar; surgem-te hipóteses ridículas de um trajecto, mas que fazem agora todo o sentido (descansa, mais tarde perceberás a figura triste que fizeste); estão aqui as pistas para começar a pensar fora do livro.
3. Enquanto durmo dou um festim (sonho): por mais rápido que queiras voltar a andar, há uma força densa, como líquido em teu torno; agora surgem imagens de que já nem te lembravas; chegaste a um local mas não já sabes como; ficas incomodado, parece que falam de ti.
4. Quando desperto estou saciado: tens a sensação de ter regressado a um lugar, mas é a primeira vez que aqui estás; agora és tu que escolhes a velocidade: “depressagarinho” parece-te bem; tens a certeza que foste enganado, mas sabes não ter argumentos para acusar ninguém nem de ser ressarcido da despesa; mas ninguém te pede que agora esvazies os bolsos com o que roubaste; parte da carcaça da besta leva-la tu.

Amanhã arrebatarei uma besta é um objecto de texto ilustrado não (totalmente) identificável: tem tanto de livro de artista como de livro infantil, sem infantilizar a primeira nem tornar hermético o segundo; tem tanto de gesto espontâneo de expressão livre como de planificada estratégia pejada de referências cartografáveis; tem tanto de brve caderno de esboços de coisas a vir como e diário de bordo de coisas vividas. E é precisamente essa tensão, sublinhada pela própria natureza intervalar destes livros (entre texto e imagem, entre cada uma das páginas da sequência, entre cada capítulo, entre cada fio de uma trama que nunca coalesce numa só lógica), que atravessa toda a macro-narrativa do livro, que se despeja de forma especial para a exposição, o seu campo expandido.

Tal como no livro o sonho para que adormecemos não nos faz despertar de regresso ao mesmo sítio, também não sairás daqui pela mesma porta, ainda que aparentemente sim. Há várias direcções a concorrer aqui. Há vários crimes a serem perpretados ao mesmo tempo. Não percas a esperança de cometeres uns quantos também. Se te perderes neles, ganhaste.


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